EFACEC: A TRAGÉDIA PARA OS CONTRIBUINTES, EM CINCO ATOS
2023-11-12 11:08:05
A história que levou o erário público a empenhar 360 milhões de euros na EFACEC não começa na nacionalização decidida em 2020. Envolve a família Mello, a banca, uma “princesa” angolana , e a típica gestão no Estado. Quando, na manhã do feriado de 1 de novembro, o ministro António Costa Silva apresentou a venda da Efacec Power Solutions, nacionalizada em 2020, ficou confirmado quanto foi empenhado pelos contribuintes na empresa: 360 milhões de euros. Os problemas do conglomerado cofundado pela família Mello nos anos 40 do século passado não começaram, contudo, na decisão de o nacionalizar. Para compreender a via-sacra da Efacec, e a fatura pública, é preciso recuar quase 20 anos , e contar a história por partes. A venda ao fundo alemão Mutares foi anunciada no dia 1 de novembro, feriado, pelo ministro António Costa Silva e pelo secretário de Estado João Nuno Mendes. Pedro Catarino O pecado original Foi em 2000 que o grupo José de Mello regressou ao capital da Efacec. Duas gerações antes, em 1948, os Mellos tinham cofundado a empresa de engenharia, através da CUF, ficando com 45% (saíram em 1958). Desde o início que a Efacec fazia motores, transformadores e material elétrico. “A decisão de entrada [em 2000] enquadrou-se, à data, na estratégia de atuação do Grupo José de Mello e teve em consideração o potencial de desenvolvimento da empresa”, aponta à SÁBADO fonte oficial do grupo familiar. Os Mellos e a Têxtil Manuel Gonçalves, um grupo industrial do Norte, entraram com uma participação minoritária, mas acabaram por repartir, em 2005, o controlo total da empresa. Os dois acionistas começaram, então, uma estratégia ambiciosa de internacionalização. O crescimento foi estrondoso , as encomendas passaram de 433 milhões de euros em 2006 para mais de mil milhões em 2010 , mas teve um preço. “Como foi habitual naquela altura, a expansão recorreu muito a dívida bancária”, relembra uma fonte do setor financeiro que lidou com a empresa. E a Efacec, que no fim de 2005 praticamente não tinha endividamento bancário, acumulava 225 milhões de euros em dívidas em 2011. Dois dos investimentos principais na expansão internacional , no mandato do CEO Luís Filipe Pereira, que fora ministro da Saúde do PSD , revelaram-se desastrosos: a construção de uma fábrica de transformadores nos EUA e a aposta no Brasil. A fábrica nos EUA, um investimento que inicialmente era de 145 milhões de euros, foi vendida em 2014, quatro anos depois de ser inaugurada. Nessa altura, a Efacec já acumulara 95 milhões de euros de prejuízos em 2013 e estava por um fio. A primeira venda Em 2011, a dívida bancária e obrigacionista da José de Mello, o mais forte dos dois acionistas da Efacec, superava 2,6 mil milhões de euros e o grupo enfrentava uma crise existencial. Ao contrário de outros conglomerados familiares antigos, como o Grupo Espírito Santo, os Mellos resistiram a essa crise, cortando a sua ligação ou interesse a vários negócios. No caso da Efacec, como noutros, foram pressionados pelos principais bancos credores , a tríade CGD, BCP e o ainda BES , a encontrarem um acionista com músculo para tirar a empresa do buraco. Os bancos não queriam reconhecer perdas e o objetivo era encontrar uma solução que desse estabilidade acionista a uma empresa que precisa dela para viver: a Efacec faz tipicamente contratos avultados de fornecimento de equipamentos (em transportes, na área da energia, etc.) com grandes empresas, que só compram a quem tiver garantias de solidez, ou seja, garantias de que a empresa estará lá para responder pela manutenção do equipamento. No Portugal sob resgate, apareceram três candidatos à compra: os chineses da State Grid (a empresa estatal que entrara na REN), o fundo norte-americano First Reserve e Isabel dos Santos. Foi a filha do então Presidente de Angola que comprou 71,7% da Efacec em 2015, num negócio que faria correr tinta anos mais tarde. Isabel dos Santos adquiriu a participação através de uma cascata de entidades sediadas nos offshores de Malta e do Dubai, enquanto um consórcio de bancos em Portugal (BCP, Caixa, Novo Banco, Montepio e BPI) financiou mais de 70% do investimento de 195 milhões de euros. A perspetiva era que, com as suas ligações privilegiadas, Isabel dos Santos expandisse a atividade da empresa em África, ao mesmo tempo que, com a ajuda dos bancos (um deles, o BCP, tinha a empresa estatal angolana Sonangol como acionista de referência) a empresa ficava estabilizada. Só que não foi assim. O Estado salva A Efacec saiu em 2016 de três anos consecutivos de prejuízos, embora a bonança de negócios em África não se tivesse materializado. O que se materializou, pouco depois, foi o risco reputacional e político de Isabel dos Santos: em janeiro de 2020, o Consórcio Internacional de Jornalistas divulgou uma investigação com base nos Luanda Leaks, um acervo de documentos extraídos pelo hacker Rui Pinto. José Eduardo dos Santos já não era Presidente de Angola e as revelações sobre desvio de dinheiro e negócios duvidosos mataram a reputação da maior acionista da Efacec. “A empresa começou a receber comunicações de clientes e fornecedores que cancelavam operações e a banca não prestava garantias”, conta uma fonte que acompanhou o processo. Os problemas chegaram à tutela da Economia, gerida pelo ministro Pedro Siza Vieira. Isabel dos Santos dera instruções para vender a participação na Efacec e a consultora financeira Stormharbour, contratada para o efeito, já tinha propostas de investidores. O arresto da participação a pedido das autoridades angolanas, contudo, complicou a venda. Havia outro problema: os bancos tinham as ações de Isabel dos Santos como penhor pelos empréstimos concedidos. O Governo lançou uma ofensiva diplomática de semanas para convencer as autoridades angolanas a viabilizarem a venda retirando o arresto, assim como os bancos a aceitarem uma venda. Uma fonte que lidou com este esforço explica que Isabel dos Santos foi juntando condições adicionais para vender, o que levou o Governo a considerar que, mesmo com o acordo das autoridades de Angola e da banca, a situação estava a ser arrastada indefinidamente pela ainda acionista, sangrando a Efacec. Siza Vieira e a equipa da Economia foram ouvindo pessoas , ex-gestores da empresa, investigadores na área da engenharia, entre outros , e convenceram-se de que num país com poucos centros de competência tecnológica valia a pena agir. Os Mellos e a TMG, sondados pelo Governo, não quiseram fazer parte da solução. A nacionalização aconteceu em julho de 2020, com um sinal ominoso: nenhuma das propostas que a Stormharbour recebera de investidores (alguns de referência, como a Veolia) era por toda a empresa, mas apenas por unidades do negócio. A segunda venda A nacionalização foi idealizada como temporária e com um desfecho rápido, entre o fim de 2020 e o ano 2021. Mas não foi assim: a empresa levou três anos a ser vendida, algo que nos bastidores da finança em Portugal é visto com muita perplexidade. Inicialmente houve a expectativa de que, já nacionalizada, a empresa pudesse aproveitar o processo em curso da Stormharbour, mas a passagem formal da Efacec para a Parpública, sob tutela do Ministério das Finanças, assim como a perspetiva de vender a empresa às postas, anulou essa ideia. No fim de 2020, o Governo definiu o caderno de encargos para a reprivatização. O Estado, através da Parpública, sondou 24 potenciais investidores e recebeu 10 propostas, das quais apenas cinco foram consideradas válidas , uma delas era do grupo nortenho de engenharia DST, que acabou por vencer o longo processo. Foi só a 25 de março de 2022 que o acordo de venda foi assinado, mas a via-sacra estava longe do fim. Refletindo a situação da Efacec, a venda implicava que além da injeção de 81 milhões de euros pela DST, o Estado financiaria mais 160 milhões, 100 milhões dos quais seriam um empréstimo do Banco de Fomento a 20 anos com carência de sete anos e uma taxa de 1,5%. Mas havia um problema: a venda tinha de passar pelo crivo da Direção-Geral da Concorrência, em Bruxelas. Para pôr o dedo na água, o Governo enviou uma pré-notificação à DG Comp em maio de 2022, noticiou o Eco, o mesmo jornal que avançaria, em julho, que Bruxelas considerava que a venda configurava uma ajuda de Estado , um cenário que envolveria medidas de reestruturação e que era uma linha vermelha para a DST. A venda arrastou-se até ao fim de 2021 sem novidades e o Governo deixou-a cair já em 2022, quase sem explicações e sem responsabilização. A SÁBADO perguntou à DG Comp quando tinha respondido à pré-notificação do Governo, e o que tinha respondido, mas fonte oficial declinou comentar. O Ministério das Finanças não respondeu às perguntas. A terceira venda O arrastamento da venda significou a sangria contínua da Efacec, que em insolvência latente não conseguia ser credível no mercado. Em 2021, os prejuízos tinham sido de 60 milhões de euros, com a faturação a cair para 154 milhões de euros , o Estado, que já tinha injetado 50 milhões na empresa e prestado garantias bancárias de 160 milhões, começou a injetar mensalmente 10 milhões para a manter a flutuar. A Efacec foi perdendo, também, trabalhadores , ao todo saíram mais de 500 entre 2019 e 2022. O segundo processo de venda foi lançado só em novembro do ano passado, tendo levado um ano a fechar. Com a situação da Efacec ainda pior, o negócio com o alemão Mutares , um fundo de capital privado com foco em empresas industriais , ditou um envolvimento ainda maior do Estado: o fundo comprou por 15 milhões e injetou outros 60 milhões em garantias bancárias. Os credores privados, incluindo os bancos, aceitaram alguma perda, mas foi o acionista Estado, mais uma vez, a garantir a sobrevivência, injetando mais 159 milhões em termos líquidos. O Governo anunciou que o Estado ficará com dois terços de uma venda futura da empresa , a SÁBADO perguntou ao Ministério da Economia que mecanismos tem o Estado para garantir que a empresa não é desnatada antes, com vendas intercalares, mas não obteve resposta (nem à questão sobre quem recebe primeiro: a Mutares ou o Estado). A Mutares também não respondeu às perguntas sobre que planos tem para a Efacec. Mais de 20 anos depois, o grupo José de Mello e a TMG perderam o capital que tinham na empresa. Para os Mellos a perda era esperada e estava já provisionada. A Efacec faturou 160 milhões de euros em 2022, pouco mais de metade do que faturava em 2005, quando os Mellos e a TMG viram potencial na empresa. Bruno Faria Lopes Há 28 minutos